25. E eis um mestre da Lei
se levantou, pondo-o à prova a ele dizendo: Mestre, fazendo o que herdarei a
vida eterna? 26. E Ele (Mestre) o disse a ele: Na Lei o que está escrito? Como
lês? 27. E ele respondendo disse: Amarás ao Senhor o teu Deus desde todo o teu
coração e com toda tua alma e com toda a tua força e com toda a tua mente e ao
teu próximo como a ti mesmo. 28. Disse-lhe: corretamente respondeste, faze (tu)
isto e viverás (Lc 10,25-28).
Jesus dialoga com um jurista sobre o
mandamento principal da Lei; observa-se aqui um verdadeiro debate teológico e
prático inscrito na linha da disputa rabínica (BOVON, 2002, p.110).
Para Lucas, não basta saber o que está
escrito na Lei – “o que está escrito?”. É preciso saber interpretá-la a partir
do coração – “como lês?”. Se a leitura é feita a partir do princípio da
misericórdia, o resultado será uma práxis misericordiosa. “29. Mas ele, querendo justificar a si mesmo, disse a Jesus: E quem é
meu próximo?”.
A pergunta do mestre da Lei “Quem é meu
próximo?” dá espaço para a narrativa da parábola (FITZMYER, 1987, p. 277-283).
A pergunta pode ser ambígua, dependendo de como se traduz πλησίον, como
substantivo ou como advérbio, podendo significar “quem é meu próximo?” ou “quem
está perto de mim?”. Ora, quando o advérbio πλησίον é acompanhado de um artigo,
automaticamente se substantiva: o próximo. O movimento do diálogo leva-nos a
pensar que a primeira forma é a melhor solução. “30. Respondendo Jesus, disse: Certo homem descia de Jerusalém a Jericó,
e caiu em mãos de salteadores, os quais despojando-o e causando ferimentos,
foram embora, deixando-o semimorto”.
Um homem que é assaltado, despojado,
espancado e abandonado, no caminho de Jerusalém a Jericó. O homem não é
nomeado, é apenas um homem qualquer. A única certeza a seu respeito é que está
passando por necessidade extrema, dado suficiente para o propósito da
narrativa. Com a expressão “caiu em” e com esta palavra “ἡμιθανῆ” a realidade
descrita acentua mais o dramático. O homem fica impossibilitado e depende
totalmente da ajuda do outro. Ora, quem se dispor ajudá-lo, também coloca sua
vida em perigo, incluindo que qualquer auxílio implica mudança de planos no
roteiro da viagem (BOVON, 2002, p. 118).
“31. Por coincidência, um
sacerdote descia naquele caminho e, vendo-o, foi pelo lado oposto. 32.
Igualmente também um levita, chegando junto ao lugar, vindo e vendo-lhe, foi
pelo lado oposto”.
Dois personagens aparecem seguidamente: um
sacerdote e um levita. O relato faz referência, provavelmente, a um sacerdote
que tivera no serviço do Templo de Jerusalém e que, ao terminar os dias de
turno, voltava tranquilamente para casa. Do mesmo modo o levita, descia de
Jerusalém, provavelmente após seu trabalho no templo. Os dois personagens
pertenciam ao mundo do culto, e a atitude deles é a mesma, a mesma indiferença;
não foram capazes de conjugar o serviço a Deus com o amor ao próximo,
esquecendo-se da misericórdia (FITZMYER, 1987, p. 284-285).
Os dois – sacerdote e levita – fecharam os
olhos perante o homem assaltado. Eles se ausentam, ignoram o sofrimento do
homem necessitado; estão mortos para o momento presente, presos ao ofício
exercido no seu passado, amarrados por regras rituais. Passaram sem se deter
diante do homem que sofre (BOVON, 2002, p. 119).
33. Um Samaritano indo pelo
caminho, veio até ele e vendo-o, foi movido por compaixão.
Em contraste aos dois personagens, aparece
agora um samaritano anônimo, sem profissão descrita, sem eira nem beira. Ele
não passa de largo; para e faz o que pode. Surpreendentemente, o auxilio vem de
um samaritano de quem não se podia esperar nada, pois os samaritanos são
inimigos dos judeus. O samaritano sofre com o homem ferido; sente-se comovido
desde as entranhas, o que o leva rapidamente a atender o homem ferido. A
urgência de estender a mão para quem precisa interrompe até o seu itinerário.
Lucas coloca o samaritano para constatar com a categoria ministerial do
sacerdote e do levita. O samaritano não é movido por obrigação legal, por
prescrições da Lei, mas pela compaixão. A compaixão indica uma atitude básica e
decisiva de toda ação que, além de ser fundamentalmente humana, é
essencialmente cristã (FITZMYER, 1987, p. 286).
A reação do samaritano é o amor; a compaixão
leva-o a recuperar a identidade do ferido. Enquanto os dois funcionários da
religião agem com indiferença, o samaritano se deixa tocar pelo homem que
sofre. Estabelece-se uma relação entre o ferido e o samaritano. O corpo
vulnerável de um, desperta o coração do outro. (BOVON, 2002, p. 120). “34. E, aproximando-se, atou as feridas
dele, derramando em cima óleo e vinho, colocando-o sobre o seu próprio animal,
levou-o a uma hospedaria e cuidou dele”.
O samaritano levava dois suprimentos para a
viagem: óleo e vinho. E com eles vai dar os primeiros socorros ao homem ferido.
Os primeiros cuidados dos samaritanos são: curar, transportar e hospedar. “35. E, no dia seguinte, tirando deu dois
denários ao hospedeiro e disse: Cuida dele, e todo o que gastares a mais, eu,
quando voltar, reembolsarei a ti”.
A missão de auxilio se interrompe, e o
samaritano prossegue viagem no dia seguinte, mas não sem antes providenciar
cuidados para o homem ferido. Ora, o sacerdote e levita nem se preocuparam de
deter-se pelo menos um instante; o samaritano anuncia que voltaria a passar na
hospedaria para rever o homem necessitado (BOVON, 2002, p. 121). A descrição do
samaritano é admirável; todos os pertences materiais – azeite, vinho,
cavalgadura, dinheiro – ele coloca à disposição para ajudar o homem ferido que se
encontra caído no caminho (FITZMYER, 1987, p. 287). “36. Quem desses três te parece ter sido o próximo do que caiu entre os
salteadores? 37. E ele disse: O que praticou a misericórdia com ele. Então,
disse a ele Jesus: Vai e tu faze (o mesmo) igualmente.”
Para Lucas, o próximo não é o outro; o
próximo sou eu quando estou agindo em favor de quem precisa, quando consigo ser
próximo. Observemos que o homem anônimo do começo, sem identidade definida, sem
condição clara, já ganha uma caracterização que o identifica: aquele que caiu
em mãos dos salteadores, ressaltando sua condição de vítima. Esse homem é um
caído e como tal deve receber socorro. A desgraça lhe dá identidade. Jesus
inverteu a pergunta do mestre da Lei; não se trata de saber quem é meu próximo,
senão de quem devo me fazer próximo. Tal atitude direciona o comportamento
compassivo do viajante samaritano, que não se perguntou se o ferido era seu
próximo ou não; simplesmente se fez próximo do desgraçado, e pior ainda, que
era seu inimigo natural (BOVON, 2002, p. 122).
Por:
Referências Bibliográficas:
- BÍBLIA
JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004.
- BÍBLIA
SAGRADA. Tradução da CNBB. São Paulo: Editora Canção Nova, 2012.
- BIBLE WORKS.79 Bíblias em 20 idiomas. Westford:Lotus
DevelopmentCorp., 1998.CD (versão 4.0).
- BOVON, François. El Evangelio según Lucas II (Lc
9,51—14,35). Salamanca:
Sigueme, 2002.
- FITZMYER, Joseph A.
El evangelio según Lucas: traducción
y comentario - cap. 8, 22 –8,14.Madrid: Cristiandad,
1987. v.3.
- FERREIRA,
Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 5.ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
- RUSCONI,
Carlo. Dicionário do grego do novo testamento. São Paulo: Paulus, 2003.
Leia também os oito artigos anteriores da série “O Jesus misericordioso em Lucas”: