Impressiona o elevado grau de
religiosidade disseminada por toda a parte. Desde os tempos do iluminismo se
anunciava o fim da religião. Contudo, por mais que a genialidade humana seja
pródiga em sua força inventiva, quando tudo estaria a sugerir que a família
humana seria mais feliz e justa, ainda assim enumeram-se as contradições da
história. Homens e mulheres, carentes e abastados, parecem sempre mais
inquietos. Uns pela falta, outros pelo excesso. E Deus é sempre lembrado. Em
muitos casos, infelizmente, até para legitimar a violência.
É muito comum confundir experiência
religiosa com experiência de fé. Também se fazem verdadeiros hibridismos entre
religião e espiritualidade. Embora sejam questões conexas, se faltar
discernimento, prevalecerá muito mais a disputa entre religião e fé do que o
encontro entre estas duas dimensões. A religião refere-se ao sagrado, ao
inacessível, dotado de onipotência. A pessoa religiosa se expressa com ritos e
cultos. Faz suas ofertas e apresenta seus pedidos. Em muitas situações envolve
um grande fascínio. Tem forte componente emotivo. Também faz parte da
experiência religiosa a adesão a um corpo doutrinal. Mas ainda não chega a ser
uma vivência de encontro com um Deus amoroso. Neste sentido, até as nossas
novenas, vez por outra, podem carecer de maiores discernimentos. Elas correm o
risco de serem apenas exercícios de religiosidade, o que é ambíguo.
A experiência de fé tem fundas raízes
na religião. Mas traz consigo alguns elementos diferenciadores. A fé pede
atitudes de relação, de confiança, de obediência. Não se trata de relação
submissa, nem confiança cega. Tampouco se pensa em obediência fanatizada. Na
experiência de fé conta muito, decisivamente, a liberdade pessoal.
Compreendamos o sentido de “obediência”. Vem do latim ob-audire. A primeira
parte (ob) é prefixo que indica “diante de”, “por causa de”. Audire quer dizer
ouvir. Daí o termo obediência.
Agora voltemos à fé. Homem ou mulher
de fé não é aquele(a) que tem certezas intelectuais. Tampouco é fé aquela
atitude psicológica parecida com pensamento positivo. Estas são virtudes
humanas, mas que ainda não integram ou constroem relações de confiança. Tem fé
quem se dispõe aderir e vincular sua liberdade em favor de alguém que confere
sentido à vida presente e futura. Porque adere também ouve, também ora, também
obedece (ob-audire). Claro, a fé tem uma dimensão religiosa porque comporta
abrir-se à eternidade, ao infinito, ao onipotente. Mas mais do que aspectos de
ritos, valem os vínculos de relação.
Agora podemos retomar a frase
do evangelho. O mais sério problema dos discípulos não era o vento tempestuoso.
Não era a ameaça das ondas. Era a sua pouca confiança. O mar agitado era
poderoso. O vento forte era ameaçador. Aos discípulos parecia mais lógica a
certeza vinda de um milagre expectado do que a confiança na força, na
autoridade e na palavra que de Jesus tinham ouvido. Eles eram homens
religiosos. Mas ainda não tinham fé. O vento e o mar se curvaram ante a voz de
Jesus. Os discípulos, porém, se apavoraram.
Segue que para chegar a ser uma pessoa
de fé o caminho a percorrer não é o das elaborações filosóficas. Não são os
raciocínios complicados que me levam à obediência a Deus. Se se trata de
relação e de confiança, então a disposição à oração é o passo primeiro. É por
isso que encontramos no mesmo evangelho de Marcos uma sublime oração de
súplica: “Senhor, vem em socorro à minha fé” (Mc 9,24).
Dom José Antônio
Peruzzo
Arcebispo de Curitiba (PR)
Fonte:
cnbb.org.br